Tomar decisões com consciência, inspirar equipes, influenciar pelo exemplo, criar senso de pertencimento. Todas essas características aparecem aos montes nas definições de o que é ser líder e refletem a prática da liderança moderna, sinalizando que esse provavelmente é o caminho para as empresas se tornarem mais prósperas e os colaboradores mais engajados – um contrapeso interessante à figura tradicional do chefe, com uma gestão focada quase que exclusivamente nos resultados, não nas pessoas.
Na hotelaria, essa capacidade de envolver processos, pessoas e experiências de forma integrada e fluida é especialmente bem-vinda. Só que existe um porém: nem todo mundo tem interesse em assumir cargos de liderança. Pelo menos foi isso o que concluiu a pesquisa “Futuro do Trabalho 2024: onde estamos e para onde vamos”, da plataforma de inteligência Futuros Possíveis, que ouviu mais de 2 mil participantes acima de 16 anos. O motivo é cristalino: subir na carreira geralmente dificulta a manutenção do equilíbrio entre trabalho e vida pessoal.
Os dados conflitam um pouco com outro estudo, “GenZ além dos rótulos”, exclusivamente focado nos jovens nascidos entre meados da década de 1990 e 2010. Este levantamento mostra que a galera da geração Z até tem a ambição de ser líder, mas não nos moldes que vigoram hoje. Eles defendem a liderança colaborativa, baseada na autonomia e em uma troca próxima entre líder-liderado, o que permite chegar em soluções inovadoras para problemas complexos.
Diante disso, algumas perguntas ganham força: existe um perfil de liderança que apresente mais ou menos eficiência? Qual é a percepção do mercado e da academia quando o assunto é liderança na hotelaria? Por que tanta gente se arrepende de aceitar uma promoção?
Para lançar uma luz neste tema complexo, conversamos com três mulheres que são verdadeiras potências:
- Ana Paula Spolon: professora associada na Universidade Federal Fluminense para as áreas de Hotelaria, Hospitalidade e Estudos Urbanos, doutora em Arquitetura e Urbanismo e com pós-doutorado em Hospitalidade e em Ordenamento Territorial e Estudos Turísticos;
- Elizabeth Wada: professora, coordenadora-geral de pesquisa e pós-graduação stricto sensu na Universidade Anhembi Morumbi e coordenadora de conteúdo do programa Radix;
- Rosislene de Fátima Fontana: doutora em Turismo e docente do programa de pós-graduação em Desenvolvimento Rural Sustentável (mestrado e doutorado) da Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
Reunimos aqui os insights dessas três especialistas para iluminar os desafios e as oportunidades da liderança no presente – e no futuro. Confira!
11 perguntas que traçam um panorama sobre liderança e provocam boas reflexões
1. Uma pesquisa realizada pela Gartner em 2024 revelou que 63% dos líderes de primeira linha relataram arrependimento em ter assumido o cargo. Esse número sobe para 76% entre os millennials que ascenderam na carreira nos últimos cinco anos. Em sua visão, o que explica isso? O que falhou na formação ou nas expectativas depositadas nesses novos gestores e no perfil de liderança que vem sendo formatado?

🎤 Ana Paula Spolon: Para ser líder, é preciso experiência, maturidade e uma série de capacitações e habilidades que não necessariamente são ensinadas/aprendidas de modo objetivo. Muitas das qualidades desejadas em um líder só são adquiridas com o tempo, e as gerações mais recentes não estão dispostas a esperar muito para alcançar bons salários, benefícios e uma posição de destaque no mercado de trabalho. Os jovens estão cada vez mais imediatistas, querem amealhar logo os benefícios da profissão – o que é um paradoxo, especialmente na hotelaria, que é um setor muito formatado e conservador. Quanto às expectativas (seja em relação aos jovens, seja dos jovens em relação aos seus empregadores), não vejo que esse seja um problema de formação. É um problema complexo, que envolve também a formação, mas não só ela.
🎤 Elizabeth Wada: O descompasso está entre expectativa e realidade. Muitos esperam protagonismo e impacto imediatos, mas encontram estruturas pouco flexíveis e pressão por resultados. A formação ainda privilegia métricas e processos, dedicando pouca atenção à dimensão humana da gestão. A ausência de suporte para lidar com dilemas e frustrações explica parte desse arrependimento. A matética – foco no que se aprende, não na forma como se ensina – pode ajudar líderes a transformar dificuldades em crescimento.
🎤 Rosislene de Fátima Fontana: Muitos jovens profissionais, ao longo da formação e da carreira, foram levados a acreditar que liderar significaria autonomia, reconhecimento, impacto e status. Contudo, a prática mostra que liderar é lidar com pressões, conflitos, sobrecarga emocional e isolamento, que há menos controle e mais responsabilidade sobre fatores incontroláveis, como metas, pessoas e crises.
O arrependimento nasce deste desencontro entre o mito da liderança e a realidade da gestão de pessoas em sistemas complexos. Ao assumir cargos de liderança, muitos se deparam com ambientes tóxicos, metas inatingíveis e pressão constante por produtividade, além da ausência de suporte emocional e institucional, levando à sensação de que é preciso se sacrificar constantemente para dar conta do recado.
Uma possível alternativa para reverter este cenário contempla a própria formação destes líderes, inserindo orientações relacionadas à inteligência emocional, à ética e à liderança colaborativa. O intuito deve ser preparar para a complexidade e não para o controle, desvinculando liderança de status e valorizando líderes que criem segurança psicológica e desenvolvam suas equipes – e não apenas números.
2. O que universidades e centros de pesquisa podem fazer para formar líderes mais comprometidos com o impacto social, e não somente com resultados econômicos? Como formar líderes com a densidade e a profundidade necessárias para enfrentar os desafios atuais?
🎤 Elizabeth Wada: Podem ampliar o foco para além de conteúdos técnicos, integrando exercícios de foresight [técnica para antecipar cenários e se preparar de forma mais eficaz para o futuro], simulações de decisão em cenários complexos e práticas de escuta ativa. A combinação de rigor acadêmico e espaço para experimentação prepara líderes para lidar melhor com ambiguidades.
🎤 Ana Paula Spolon: Não acho que seja uma questão de ação somente por parte de universidades e centros de pesquisa. Considero que estudantes precisam ser inspirados – por suas famílias, pelas empresas, pela escola. É um trabalho conjunto, que precisa ser conjunto. Tenho 30 anos de sala de aula e sempre foi complicado trabalhar com o setor hoteleiro. Conseguir uma visita técnica é difícil, receber um hoteleiro para uma palestra é raro e são praticamente inexistentes as oportunidades de um professor participar de um evento organizado pelos hotéis ou de receber convites para conhecer um empreendimento que esteja sendo inaugurado, por exemplo.
Como a indústria espera que consigamos traduzir para os jovens o que é a hotelaria, se nós mesmos não a conhecemos e não participamos de sua dinâmica? A universidade tem como papel principal produzir e disseminar conhecimento. E este conhecimento será tão mais rico e promissor quanto mais perto a universidade estiver dos setores com os quais se relaciona. O restante é consequência.
3. Qual seria o cenário ideal em empresas, universidades e projetos, aquele ambiente no qual liderança não causa arrependimento, mas, sim, gera propósito?

🎤 Ana Paula Spolon: Parceria. Há diversos problemas reais da hotelaria que podem ser pensados e resolvidos na universidade por meio de projetos de ensino, pesquisa e extensão. A pesquisa aplicada é um caminho sensacional de aprendizado para todos e é uma vertente pouquíssimo explorada no Brasil. Um aluno que se envolve desde a escola com os problemas do setor em que deseja atuar se sente muito mais desafiado a ser parte deste setor. Está nas nossas mãos (escola e hotelaria) realizar mudanças de paradigmas que nos levem a um novo cenário, constituído por jovens cujo papel como líderes pode ser bastante impactante para a sociedade.
🎤 Elizabeth Wada: O ideal é um ambiente em que a liderança seja distribuída e não concentrada. Empresas e universidades devem estimular líderes como facilitadores de talentos e construtores de propósito coletivo. Como destaca Oscar Motomura [fundador e CEO da Amana-Key], trata-se de equilibrar inovação e tradição, curto e longo prazos, de modo a gerar confiança e engajamento.
🎤 Rosislene de Fátima Fontana: O cenário ideal é aquele em que a liderança não apenas motiva, mas também engaja as pessoas em torno de um propósito claro e compartilhado, que vai além de atingir metas e que visa transformar as pessoas e as realidades ao redor. Quando esses elementos estão presentes, as pessoas sentem que suas ações têm um impacto positivo e real e encontram significado no que fazem. Tudo isso diminui o risco de esgotamento e desengajamento, promovendo satisfação duradoura e contribuindo para uma liderança bem-sucedida.
4. Qual é o maior equívoco atual sobre o que significa ser líder?
🎤 Rosislene de Fátima Fontana: O grande erro é idealizar a liderança como uma posição de autoridade, controle e status. O bom líder influencia, inspira e valoriza sua equipe.
🎤 Ana Paula Spolon: Todo setor tem uma organização piramidal. Nem todo mundo vai ser líder – a maioria das pessoas não será. No entanto, é possível ter funcionários motivados e empoderados, a ponto de resolverem problemas cotidianamente e se sentirem importantes na estrutura, querendo manter-se nelas. Antes de pensarmos na adequação do papel da liderança é preciso pensar em formar um grupo de trabalhadores que faça a diferença. Um grupo assim talvez nem precise de (tantos) líderes.
🎤 Elizabeth Wada: O maior equívoco é reduzir liderança a comando e poder. Liderar é orquestrar talentos, aprender junto e construir legitimidade pelo exemplo e pela escuta. O líder polímata [que estuda e conhece muitas ciências] e hospitaleiro reconhece que não domina todos os saberes, mas promove a aprendizagem coletiva.
5. Como professora e pesquisadora, você percebe nas novas gerações resistência em assumir posições de liderança?
🎤 Ana Paula Spolon: Percebo resistência em assumir responsabilidades, especialmente por um conjunto de salários/benefícios que não consideram atrativos. As novas gerações querem mais liberdade para criar, querem orientar sua dinâmica laboral e desejam ter bons ganhos. Nem sempre é possível obter tudo isso rapidamente.

6. Dada sua extensa trajetória entre comunicação, mercado e academia, quais você diria que são os desafios atuais de quem ocupa cargos de liderança, sobretudo no que se refere ao perfil de liderança demandado pelas transformações sociais e de mercado? Você enxerga interseções entre esses universos que podem ajudar a revitalizar o papel do líder?
🎤 Elizabeth Wada: O principal desafio está em lidar com a complexidade e a velocidade das transformações. O líder precisa atuar como polímata, integrando diferentes saberes para construir uma visão sistêmica. Gary Hamel lembra que estruturas rígidas já não respondem às demandas atuais, exigindo criatividade e adaptabilidade. A interseção entre academia, mercado e comunicação favorece líderes que aprendem continuamente e equilibram estratégia com escuta, como propõe Oscar Motomura.
7. Em projetos de turismo rural, o líder precisa dialogar com produtores, comunidades locais, universidades e órgãos públicos. Como liderar em um ambiente tão diverso e que muitas vezes envolve conflitos de interesse (econômicos, sociais e ambientais)? Que habilidades um líder precisa ter para equilibrar esses diferentes lados?
🎤 Rosislene de Fátima Fontana: O líder deve combinar habilidades interpessoais, estratégicas e éticas, o que inclui uma escuta ativa e empática, compreendendo os valores, as preocupações e as motivações de cada grupo e demonstrando respeito perante as diferentes realidades sociais e econômicas. Além disso, é importante ter uma visão global do processo de desenvolvimento do turismo rural, tomando decisões de forma honesta e participativa, atentando-se para os impactos gerados em longo prazo e adotando uma comunicação clara e transparente para tornar a informação acessível e ganhar a confiança de todos.
Da mesma forma, é preciso gerir os projetos com foco em sustentabilidade, preservando os limites ambientais, sociais e culturais da região, monitorando os resultados e adaptando as estratégias quando necessário. Isso só é possível para o líder que tem a capacidade de articular parcerias em torno de objetivos comuns, fomentando a troca de conhecimento científico e saberes locais.
8. Nos seus trabalhos com mestrandos e doutorandos, quais aspectos da liderança aparecem como mais críticos para promover projetos de desenvolvimento sustentável?

🎤 Rosislene de Fátima Fontana: A capacidade de gerenciamento de conflitos e expectativas tem sido o fator mais crítico no que se refere a projetos de desenvolvimento rural sustentável, especificamente os ligados ao turismo. Isso porque conciliar os interesses imediatos dos atores envolvidos com as necessidades de sustentabilidade em longo prazo não é uma tarefa fácil e exige muita resiliência por parte do acadêmico/pesquisador. A desconfiança dos atores envolvidos também é algo que se torna um desafio, pois muitos já estão desacreditados com falsas promessas ou projetos que não trazem o retorno almejado, sobretudo em relação à sustentabilidade econômica, social, cultural e ambiental.
Embora os princípios fundamentais de liderança sejam universais, o modo de liderar e o papel do líder variam consideravelmente em ambientes urbanos e rurais. Ambos os contextos exigem habilidades de empatia, escuta e colaboração, mas em formatos e dinâmicas diferentes. Enquanto os líderes urbanos lidam com dinâmicas mais complexas e rápidas, os líderes rurais têm uma responsabilidade maior com o bem-estar comunitário e com processos mais sustentáveis. É um estilo de liderança mais informal, com laços de confiança e proximidade e orientado pela experiência, tradição e consenso.
9. Em seus estudos, a hospitalidade não se limita ao setor de serviços, mas envolve relações sociais, culturais e urbanas. O que esse olhar ampliado pode ensinar sobre novas formas de liderança na hotelaria?
🎤 Ana Paula Spolon: Penso que este olhar ampliado, que reconhece o conceito de hospitalidade como um fenômeno, do qual faz parte a hospedagem comercial, muda o foco da prestação de serviços – ou da ideia de servir – para a proposta de cuidar: de si, do outro, dos ecossistemas (empresa, cidade, grupos sociais) e da nossa existência enquanto coletividade.
Por esta perspectiva, só o líder altruísta e com consciência de grupo, de coletividade, conseguirá exercer com sucesso sua liderança. A formação do indivíduo para ocupar posições de liderança passaria, portanto, por uma formação mais humanista e mais responsável pelo ambiente, pela cultura (local, regional e global) e pelas questões sociais, sobressaindo-se a questões econômicas e utilitárias.
10. Você utiliza uma ou mais abordagens em sala de aula para formar futuros líderes? Em caso positivo, poderia falar um pouco sobre tais abordagens?
🎤 Elizabeth Wada: Adoto metodologias de aprendizagem experiencial e colaborativa. Projetos interdisciplinares, debates e reflexões críticas permitem que os alunos experimentem papéis de liderança e aprendam pela prática e pelo diálogo.
A liderança é processo em construção, e a universidade deve oferecer experiências que favoreçam esse desenvolvimento, tanto na sala de aula e nos laboratórios, quanto em projetos de pesquisa e de extensão.
11. Se você fosse indicar uma ou mais qualidades essenciais para o líder do futuro, quais seriam elas? Por quê?

🎤 Ana Paula Spolon: Estudo, dedicação e paciência. Mas, de novo, para o estudo ser eficaz, a universidade precisa ser subsidiada pela indústria; para o estudante se dedicar, ele precisa se apaixonar pela área. É preciso ser paciente para crescer, sim, mas também é necessário ver luz no fim do túnel, o que significa saber-se em uma empresa que reconhece os esforços e que estabelece um plano de carreira consistente e condizente com o perfil dessas novas gerações. Empresas hoteleiras devem se modernizar no que tange ao processo de atração e retenção de talentos, e o professor é parte essencial deste processo.
Ser líder é um exercício diário de aperfeiçoamento
Como você, leitor, deve ter percebido, a liderança não é um destino, mas um processo contínuo de aprendizado e evolução. As reflexões levantadas aqui servem como ponto de partida para repensar práticas, ampliar perspectivas e fortalecer o papel de cada profissional no desenvolvimento de equipes e organizações. Afinal, ser líder vai muito além de ocupar um cargo: envolve inspirar, engajar e gerar impacto positivo no coletivo.
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